quinta-feira, 8 de julho de 2010

No quintal

O telefone do Dr Fernando, o psiquiatra, está bem ao lado do telefone. Logo ao lado o da polícia, nunca sei quando vou precisar de um deles. Nunca ninguém sabe. Não sei se verei corpos mutilados ou enforcados e os guardarei pra mim, ou brincarei com eles ou me desfarei dele sem ao menos lembrar onde os enterrei. Nunca sei se eles estarão no jardim do vizinho ou no meu, se serão parentes deles ou meus. Ou de nenhum de nós.

Podem ser vítimas de minha sanidade ou loucura total, não sei qual é mais perigosa exatamente. Se os olhos forem muito azuis, posso querê-los apenas para guarda-los num potinho e olhá-los quando sentir falta de um antigo amor. Posso querer também o dedo indicador para não ter o meu criticado quando apontar e rir de alguém na rua.

O mais sintuoso dos corpos pode até me servir para um jantar à dois, quando eu dispensar a prostituta. Seria até mais agradável, eu dispensaria toda a baboseira que ela falaria e o escarcéu que arrumaria para tê-la. E se eu desistisse dela na hora H? Existe esse risco - já disse que nunca se sabe -, é melhor mesmo um jantar a dois com o corpo, ou melhor, que não seja convidado especial, mas sim prato principal.

Comerei coração durante uma semana e passarei horas acariciando cabelos loiros despenteados no sofá já gasto, jogarei cartas e sempre ganharei. Brincará com meu cachorro e ele ficará totalmente satisfeito por ter alguém para brincar e por finalmente terem paciência para ele. Ficará tão feliz que até irá querer tomar banho.

Nos dias de sol, iremos nos trancafiar no armário com pijamas e ninguém irá reclamar comigo que quer o tão sonhado sol de verão. Eu irei me vestir com roupas de mulher e ficar totalmente feliz em ver rostos tristes, alegres e rudes - porém paralisados. Vestirei-os com roupas de época e tiraremos fotos de famílias antigas, como se tivéssemos todos o mesmo sangue, já que a essa altura do campeonato todos os sangues já terão se misturado mesmo. Colocarei suas mãos onde quiser e tiraremos a foto de primeira porque não haverá ninguém com sorriso cansado, riso preso ou denunciando infidelidade alheia.

Esses corpos do quintal nunca me assustam. O quintal da minha mente sempre me espanta. E o meu vizinho louco me entregaria de primeira. Por via das dúvidas, lá está o telefone do Dr Fernando.

Um comentário:

Rodrigo Albergaria disse...

É formidável como você consegue explorar diversos universos. Do amor à psicose: tudo é matéria-prima. Esse conto, por exemplo, me lembrou o "silêncio dos Inocentes"