sábado, 11 de setembro de 2010

Pinta

Ela tinha uma pinta. Dizem os homens e, principalmente, as mulheres que ela era bonita. Não sei, deve ser. Aliás, ela pode ser bonita, pode cozinhar bem, pode saber todos os textos do Caio decorado; mas ela tinha uma pinta. Uma pinta bem em cima daqueles seios enfaixados, mas que não chamavam muita a minha atenção.

E aquela pinta me prendeu por muito tempo. Talvez soe até meio doentio dizer que me apaixonei por uma pinta. Mas preciso ser sincera: aquela pinta me fez esquecer, por um bocado de tempo, aqueles olhos verdes. Olhos verdes esses que eu mantinha em mente e atenção, que eu via em toda esquina - que eu pedia cada vez que as dobrava. Mas aí veio a pinta e acabou-se o que era doce. Ou quem sabe começou.

A pinta me instigava. Eu deveria estar prestando atenção em outras coisas, nem que fosse no corpo praticamente semi nu daquela mulher; mas não. Ela, a pinta, era interessante. Ela me chamava. Ela me encarava, me chamava de gueixa e me perguntava: "decifra-me". Eu, tola, de primeira não entendi. Não entendi porque estava num estado de transe. A meia luz me deixava down, juntamente com a música de fundo. E a mulher falava, falava e falava coisas profundas e sinceras que eu ouvia apenas de longe. O ambiente inalava odores de alecrim e hortelã que acabou por se impregnar em minha pele - tudo para eu lembrar dela.

Mas talvez não seja tão pecaminoso e imaginativo assim pensar que eu estava fissurada por uma pinta, a partir do momento que lembramos que sua dona falava de dragões. Dragões esses que me faziam cada vez mais olhar pra pinta e a pinta e a pinta. Lembravam-me a ela, sabe? Talvez por serem tão intensos quanto.

Atenção: a moça não era meu objeto, como era a dona dos olhos, mas sim a pinta. E não era objeto de desejo, era de indagação, de desafio. Ela me desafiava! E eu caía em seus encantos. Afinal, quem era ela? O que ela queria comigo? Sentia que só eu a via de fato. Seriam os outros tão cegos pra ela? Mas talvez eu mesma a tenha procurado em todos os cantos da sala, como forma de esquecer aqueles tais grandes olhos que pairavam em minha mente. No entanto, embora tudo isso, ela me dava uma certa angústia, me transmitia uma dor.

Acho que a moça não reparou muito que eu estava tendo uma certa relação com sua pinta. Mas também pode ser que não se importe, ela é livre, sabe lidar com essas coisas. Quem sabe, exatamente por ter nos decifrado, ela ache normal o meu interesse por uma parte de seu corpo. Mas ainda acho que ela não reparou.

No fim, com as luzes mais fortes, reparei bem nela. A tal pinta não era uma pinta, mas sim um machucado. Machucados viram pintas eternas para que lembremos o quanto eles doeram, ou quem sabe ainda doem. E talvez por isso ele tenha me encarado tanto assim. Talvez, a moça tenha se machucado de alguma forma e ele tenha tentado me alertar contra ele próprio. Talvez ele me conheça e saiba o que eu estou prestes a fazer, e me mostre que ele é a consequência. Talvez, mas só talvez.

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